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Era uma vez um Dominador nada louco que fundiu a fantasia com a verdade e aqui vem contar algumas de suas disparidades.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Dom Demétrius e Jezebel – a insubmissa [Parte 009]

Dom Demétrius e Jezebel – a insubmissa [Parte 009]

Jezebel, jogada, desfeita. Era uma poesia parnasiana nas mãos de um concretista. Algo quase surreal. Tudo para dar errado, por isso, vinha dando tão certo.
O mundo rodava em uma órbita sem igual, nunca antes sentida.
Ela, uma apaixonada por flamenco, só conseguia lembrar de Carlos Saura e sua mais famosa película de Peteneras. Um canto triste, melancólico embasado em complexa forma poética.
Carlos dizia: Sentenciado estou à morte se me vêem falar contigo.

Após breve sono – e ela não entendia como dormia tão fácil e profundamente ali – ela desperta com o cheiro de comida.
Não havia visto, mas à sua frente estavam:
1. Duas vasilhas, uma de cão e outra de gato, repletas de alimento.
2. Um punhado de corda.
3. Uma navalha.

Jezebel não soube o que pensar. Olhou para todos os lados e nada de Dom Demétrius. Nenhum barulho, movimento de som. O silêncio gritava tão forte que era possível ouvir as intensas ondas cerebrais batendo na praia da insegurança, convidando um surfista viciado, o medo, a tubar em seu meio ou manobrar em sua crista.
A comida era bonita, aspecto saudável, cores deliciosas, cheiros impagáveis e arrumação de bistrô francês. Um prato alternativo.
O tempo passou para aquela mulher. As vasilhas não se mexeram, a corda não serpenteou seu corpo e a navalha não abriu uma boca para sorrir e lhe dizer “oi!” qual as criancinhas do comercial da operadora de celular.
O medo era maior que a fome, que era maior que a razão.
Olhava para a comida ainda quente e o desejo era de experimentar. Mas e aí? E se comer significasse ter que usar a corda e aceitar o corte da navalha?
Tantos couros de pele pendurados... Será que foi assim que os conseguiu? Será que as peixas morriam pela boca e não pela fome de sexo?
Jezebel era só pensamento. Sua face estava vermelha, seus olhos rodavam freneticamente no globo ocular, sua pele clareava, escurecia, clareava, fumegava.
Ninguém? Sozinha? Um jogo de abandono?
Sua mente começara outro motim. O intuito era sabotar a submissão que comandava o barco e sair em exploração. O quadrado onde estava era uma ilha, logo depois o mar de suas vontades e mais adiante o continente pronto a ser tomado, explorado e assumido. Ela não ousaria. Não tinha disponibilidade para tanto.
A fome foi ativada com o cheiro da comida.
A fome foi ativada com a cor da comida.
A comida foi ativadora na fome de Jezebel.

O tempo passou, a mente desesperou e nada aconteceu. Nada.
Dom Demétrius não apareceu, não apareceu música em som, vento em esperança, vultos em confabulação. Nada.
Ela queria. Sim, Jezebel não suportava a solidão. Ainda mais de estar vazia como estava.
A comida esfriou e qual um cão treinado não a comeu. Comida só das mãos diretas do Dono e Senhor de si.
A corda era de juta, a navalha, antiga, era de fio preciso. Apurado. Daquelas que ainda usam tira de couro para amolar. A tira estava junto, era acessório na embalagem.
20 metros? Não dava para saber quanto de corda havia ali.
Um cheiro! Jezebel sentia o cheiro do perfume Daquele homem. Enfim, Ele chegara! Qual um cão farejando seu Dono, ela o percebeu. Se arrumou, ajeitou-se no chão, ajeitou a roupa que não tinha, os cabelos que ali estavam e orgulhava-se por não ter comido nada, mexido em nada. Estava feliz. O rabo mexia freneticamente. Era incontrolável. Se a dois segundos atrás ela queria matá-Lo, agora bastava seu perfume para querer amá-Lo.
A posição escolhida foi de joelhos, testa no chão, sola dos pés para cima, mãos com as palmas para cima, humor em riste, esperança acima de tudo, todo o mundo para cima, acima, em riste!

O cheiro fica mais forte. O rabo abana mais.

O tempo é de quem tem o tempo, oh senhor.
T empero agridoce
E staca de madeira seca
M ulher nas luas das luas que vem
P ossibilidades vociferantes, vorazes
O nde tudo é nada, nada o é. Tempo.

O tempo passou, a posição incomodou, Jezebel esperou. O perfume ficou tão forte que Ele parecia estar à sua frente, mas ao levantar a cabeça nada via. Não O via. Sentir era viável, ver impossível.
Jezebel, pela primeira vez chorou sentida. Chorou com a verdade das lágrimas que lhe banhavam os seios. Os dois.
Sua pele aquecia e esfriava, seus olhos enchiam e esvaziavam. Seu mente não perdôou nada.
Quem era Ele para brincar assim com ela?
A vontade foi de gritar, quebrar tudo, extravasar.
Não. A vontade foi de ir embora sem olhar para trás.
Não. A vontade foi de não ter vontade alguma. No fundo toda aquela mescla de tudo e nada, tempo e espaço a burilava os sentires. Um liquidificador onde as matérias primas perdem-se em valores. Partículas do que foi, disponibilidades, nem sempre sabidas, do que será.

Jezebel não sabia o que fazer. Não fazia nada. Queria fazer tudo.
O jogo não era mais Dele.
O jogo não era mais dela.
Então de quem era o jogo, afinal?
Do tempo, senhores.
Só o tempo jogava. Só o tempo administrava os desejos e as vontades.
Só o Tempo expurgava as verdades inflamadas em cada um.
Tanto Dom Demétrius quanto Jezebel estavam a mercê do tempo. O senhor de tudo.
Fosse perdido o tempo, não haveria tempo que compensasse.
O choro ia alto quando Jezebel ouviu passos. Calou.
De um salto olhou. Nada viu. Agora o Tempo passará a batuta para o Nada?
Mais passos. Mais fortes. Mais rápidos. Mais perto. Mais perto. Mais perto.
Seu coração acelerou, seus olhos sintonizaram a pouca luz do ambiente, seu peito se abriu. Ela acreditou.
Numa dobradinha digna de craques de um futebol já esquecido, Tempo e Nada organizavam tudo. Jezebel não sabia se era bola, jogador, goleiro ou trave. Árbitro ela não teria condições de ser. Não queria ser. Naquela situação, não saberia ser.
Jezebel chegou a um ponto - Tempo! – em que não sabia o que pensar.
Jezebel cegou a um pingo – Tento! – em que não sabia o que pesar.
Jezebel chegou a um passo - Tango! – em que não sabia onde pisar.

E Demétrius, onde estaria, afinal?
Seria Ele o controlador de tudo aquilo?
Teria, Ele, o controle até mesmo do Tempo e do Nada? Jezebel deu-lhe força para tanto? Sua força chegara a esse complexo tango de valores, passos e porturas?

Jezebel tinha a sensação de estar constantemente vigiada. Será que, de alguma forma, Ele a via?
Onde estava Aquele homem? O tempo estava correto? Ou será que a demora fazia com que todo o tempo se perdesse em nada?

O silêncio era tamanho que dali seria possível ouvir o cair de uma agulha no Tibet.
O silêncio era tamanco de gueixa, balde de lavadeira, instrumento de percursionista. Você sabe exatamente o que é, mas nunca arrisca um palpite. Seria arriscado demais.

Entendi. O Silêncio era o terceiro jogador naquela seara. Um mercador astuto que aparecia justamente na hora de fechar negócio.
O mundo estava mudo ou ela perdera o sentido da audição?
A fome não existia, os sentidos persistiam, as vontades iam e vinham, mas Dom Demétrius não aparecia.

Jezebel levantou-se. De pé.
- Quem mandou que levantasse, submissa?
Ela tomou um susto ao ver que Ele estava atrás dela. Camuflado na parede. Esteve ali por todo o Tempo? Mas como, se ela não ouvira sua respiração? Seguramente se Ele estivesse ali por todo o tempo, ela teria ouvido os batimentos de seu coração. Se bem que um homem como aquele não devia ter coração.
- Senhor.
Ela mesclava felicidade, espanto e mais nada. Seu tempo chegou. Acabara a dor. Um alívio instalou-se em seu peito, um peito abriu-se para o alívio que instalava-se. O Nada gritava que não queria sair do jogo. Ela o sentia também.
Agora Tempo e Nada voltavam a normalidade. Mas que normalidade!? Jezebel estava sob o dominio Daquele homem por somente um dia, uma noite e, agora, meio dia. Isso é tempo? Tempo suficiente para ter padrão? Quem é o Tempo? Quem é o Nada? E o Silêncio? Quem são esses cavaleiros, senhores?
Jezebel O olhou, fitou nos olhos daquele homem que a cada segundo a arrebatava mais.
- Jezebel, oras... Você não comeu, cão. Exclamou Ele em tom irônico, afinal ficara feliz pelo adestramento indireto ter funcionado.
Ela respondeu com um abaixar de cabeça, com um olhar perdido, com a cabeça nas nuvens e o coração em prantos. Ele estava ali. Ele!
Dom Demétrius a olhava, olhava para as vasilhas, olhava para a corda, para a navalha. Olhava para Jezebel.
O que via?
O que viria?
O que seria?
Qual o jogo agora? Qual?
Tempo? Nada? Silêncio?
O que viria? Espaço? Tudo? Sons?
Jezebel olhava para o chão, para Dom Demétrius, para seus pés. Para si.
- Uma pena não ter comido enquanto não estava quente, Jezebel. Talvez queira algo mais animal, mais você, não, cão?
Ela abaixa a cabeça, Ele continua com sua voz tranqüila, seu ritmo quase valsa, seu timbre quase tango.
Ela O ouve. Num ritmo luz, numa cadência relâmpago, “Allegro ma non troppo”
É, aquela partitura era difícil de executar, incomum de tudo que já havia visto, vivenciado, possibilitado.
Jezebel, era um misto de encantamento, dor e sentir.
Jezebel, era um misto quente que, se frio, não teria o mesmo sabor. Como um calor pode fazer tanta diferença?
Explicitamente, Dom Demétrius era o maestro de todo aquele sentir. Com uma batuta fina, quase invisível, Ele orquestrava de forma magistral. Ele controlava até os pensamentos daquela mulher que sempre, ao ler sobre a ditadura, dizia que, naquela época mataria uns mil. A sua frente tinha somente um e ela era incapaz de mover músculo sem a ordem direta Dele.
Um concerto!
Bom para público, para músicos, para Jezebel.
- Vamos seguir, Jezebel!
Ele lavanta a voz, anima o som e preenche o ar com uma luz diferente.
Pega a corda, pede que Jezebel O acompanhe para uma outra parte do salão. Ela O segue. Não deram mais que uns dez passos para chegar a um quadrado vasto, de desenho místico no chão e espaço suficiente para um transar de mãos, corpo, corda e o nascimento de um shibari.
Shibari, aliás, era o grande tesão de Jezebel. Nunca o recebera, sempre sonhou com ele. Era sabido que o Shibari de Dom Demétrius era artístico, bem trabalhado e repleto de misticismo.
Ela queria aquele momento, seu coração se alegrou. O Nada fora definitivamente expulso de cena. A Emoção fora convidada de honra (e glória!).
Agora sabia que as vasilhas eram para serem consumidas, a corda para o shibari, mas e a navalha?
Ela não pensou mais nisso quando Ele lhe ofertou uma venda e, gentilmente, pediu que a colocasse. O fez.
- A partir de agora perde um dos seus sentidos mais ilusórios, Jezebel. A visão é uma menina rebelde que insiste em manipular quem a vê. Ela é como uma luz que cega a uns e faz ver a outros.
O grande segredo é a permissão que cada um se franqueia e o quanto aciona os outros sentidos.
Se permita ouvir mais, sentir mais, cheirar mais. Tatear com o corpo.
A falta de olhar lhe fará perceber os muitos ritmos, ritos e cores das músicas do mundo, Jezebel.
Não é a falta de olhar que lhe fará não ver, mulher.
A venda, em verdade, foi um carinho. Jezebel sonhou tanto com aquele momento que ter os olhos vivos faria com que o coração puxasse a morte em batimentos freneticamente descolorados.
Seu corpo suou quando a juta lhe pesou no pescoço para o primeiro passe.
Uma puxada, um aperto, mais uma passada.
Jezebel achou que iria desmaiar.
Não se sabe o porque, mas Dom Demétrius apenas disse:
- Dance, jezebel. Dance com a corda, mulher.
Ela dançou, senhores


Não tenham dúvidas. Para ver o Shibari na íntegra, acessem o video acima. Ele mostra, com riquezas de detalhes toda a sessão de shibari.

(continua na próxima semana?)
(Volto para ilustrar e revisar durante a semana)

Um comentário:

  1. ¨Jezebel, era um misto de encantamento, dor e sentir.¨

    Marquei essa frase, coisa mais bonita não há.

    beijos


    anammk_fóton_Alq.

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